sexta-feira, 24 de junho de 2011

Memórias das terras de Igarassu, Itapissuma e Itamaracá...


Eu fiz esse trabalho quando tava fazendo Especialização em Ensino de História, lá na UFRPE. Foi o trabalho final da cadeira "O tempo no estudo da História", com a professora Noemia, que foi uma das melhores professoras que já tive. Tive ajuda de Zito e de Flávio, principalmente no que se refere aos conceitos, pois os resumos deles me ajudaram bastante. Tínhamos que fazer um trabalho sobre a aula-passeio que tivemos para Igarassu, Itapissuma e Itamaracá e também tínhamos que usar os conceitos de História, Memória e Tempo e um dia antes a gente não tinha nada pronto, foi aí que comecei a escrever e escrevi até altas horas da madrugada e o trabalho ficou pronto. Como todo mundo diz que ficou muito bom, resolvi colocar aqui. Ah... isso foi em 2008, então ortograficamente podem ter algums coisas que não se usam mais hoje em dia...

Primeiro dia: Chegada em terra firme.
         Depois do naufrágio do navio, passei alguns dias à deriva. Agarrei-me a uma porta que boiava por perto e sobre ela passei alguns dias, ou meses. A minha noção de tempo foi alterada e sinto que alguma coisa nas minhas lembranças está errada, pois até agora tento me lembrar a causa do naufrágio sem sucesso, estou tendo lapsos de memória, preciso reorganizá-la. Você poderá me perguntar, caro leitor (se é mesmo que alguém vai ler estas minhas proezas), se não havia sol ou lua no céu para guiar-me, para que eu pudesse saber se era dia ou noite e quantos dias haviam se passado. E o que te respondo é que o sol e a lua continuaram onde sempre estiveram. Quem não estava era eu. Ou pelo menos não completamente, pois passei vários momentos inconsciente. E quando recobrava a consciência, não sabia se haviam se passado dias ou horas.
         Ao chegar em terra firme, estava desmaiado. Fui trazido para a casa de um habitante local. Disseram-me que passei dois dias dormindo. Não sei. Como disse, estou perdido no tempo, e acho que ainda mais no espaço.  Quando acordei, vi que estava em uma cama quente (só em não estar dentro d’água para mim já é o suficiente) e percebi que haviam me dado um banho, pois estava muito fraco para que pudesse ficar em pé sozinho. E me deram de comer. Ah... comida de verdade: peixe frito, arroz, frutas etc. Nada de comer pedaços de roupa ou cintos.
Após o almoço, senti uma certa vontade de escrever e perguntei se não haveria folhas papel na casa, para que eu pudesse pelo menos organizar algumas idéias num diário, já que o meu antigo, e disso eu lembro, foi levado pelas águas. Fui prontamente atendido com estas folhas que agora me valem. Após isso, dormi novamente. Acordei, jantei, estou escrevendo em minha cama, se é que posso chamar de minha, ou na cama que me vale neste momento. A esposa do dono da casa me fez um belo chá. As pessoas desta terra são muito hospitaleiras. Bem, pelo menos as desta casa em que me encontro. Vou dormir. Ainda estou bastante cansado. As horas me têm parecido bastante longas. Me parece mesmo que têm sido muito mais longas do que antes do nefasto acontecimento, em que desfrutava de momentos mais amenos. Amanhã, caso tenha forças para tanto, pretendo fazer uma expedição pela terra, para poder conhecê-la. Não digo melhor, porque ainda não conheço nada.

Segundo dia: Do meu deslumbramento com a terra.
         Hoje, segundo dia de minha estada nesta terra, que ao que parece será a minha terra por tempo bastante para que eu possa conhecê-la bem. Aqui não passam tão freqüentemente navios, barcos, jangadas ou madeiras boiando de qualquer naufrágio. Será difícil que alguém dê por minha falta. Acho que os meus companheiros de navio morreram todos. O pior é que nem sei como voltar, sei lá pra onde.
         Caminhei um pouco por perto da casa onde me encontro. Os donos da casa chamam-se José e Maria, e seus filhos chamam-se Cosme e Damião, em homenagem aos padroeiros da cidade.
         Pude ver como o mar aqui é azul. Deve ser por conta do sol forte.  Vi os altos coqueiros, que embelezam esta terra. Quando se chega perto, parecem ainda maiores. Não vi mais que isso, pois as minhas forças não permitiram. Janto daqui a pouco e em seguida durmo.

Terceiro dia: O Convento de Santo Antônio dos Franciscanos.
         Andando, cheguei a um vilarejo de casas coloridas e telhados de eiras e beiras, já modificados pela ação do tempo. Em frente ao vilarejo há um monte com duas igrejas e algumas casas no alto. Contive a minha curiosidade e fui à igreja que se encontrava em minha frente. A de Santo Antônio dos Franciscanos. Por conta de sua torre afastada, percebi que era um convento.
         Em frente à igreja há uma enorme cruz. Passei pela cruz e continuei andando em direção à igreja. Logo na entrada, fica-se extasiado com as pinturas que estão no teto. São alguns santos. É certo que o tempo não tem sido muito amigo delas, pois estão queimadas, mas ainda assim são muito bonitas. E a porta da Igreja... Aquela sim é uma porta.
         Um jovem rapaz me acompanhou na minha visita à igreja, para me falar um pouco de sua História. A Igreja de Santo Antônio é do estilo Barroco e foi fundada em 1588. Em 1632, ela foi saqueada pelos holandeses. A sua ornamentação vai sendo colocada aos poucos. Ao entrar, olho logo para o teto. Acho que tenho algum tipo de fixação por tetos de igrejas. O desta igreja tem uma característica muito interessante: as pinturas são claramente barrocas, mas há uma grande influência de pintores pernambucanos, que dão um colorido especial em volta dos caixotões. As imagens do teto são uma releitura dos azulejos portugueses que se encontram nas paredes e que contam a vida de Santo Antônio. Estes azulejos chegaram à igreja no século XVIII.  Nas laterais da igreja temos umas aberturas, espécie de janelas, que serviam como defesa militar. Há vários túmulos dentro da igreja. Ao vê-los, fiquei me perguntando quem seriam aquelas pessoas e o que faziam.
         Observando um pouco mais o interior da nave, pude apreciar a imagem de Santo Antônio de Lisboa. O santo encontra-se com o menino Jesus no braço e em cima da bíblia. Nunca havia visto Santo Antônio representado desta forma. Observei tanto que encontrei até uma curiosidade em relação aos azulejos que forram as paredes. Acho que devem ser de artistas e caixas diferentes. Os do lado direito (para quem está de costas para o altar) têm uma mudança na espécie de moldura que faz a divisória entre as imagens. Tanto a parte de cima como os lados. A parte de baixo encontra-se incompleta em alguns. Os traços do desenho também são mudados. No coro temos influência árabe. Ao vê-lo fiquei pensando em quantos povos estiverem ali e quais as suas contribuições para que este lugar fosse o que é hoje.
         Após o meu período de contemplação, fui chamado pelo rapaz para ir à Pinacoteca do Convento. Entrei em novo êxtase só em ver a porta. Ao abri-la, pude conhecer ainda mais sobre a História do lugar, que se chama Igarassu ou Igaraçu. O nome é de origem tupi–guarani e significa Canoa Quebrada. Duarte Coelho Pereira chegou aqui em 1535, para tomar conta de sua possessão de terra, que lhe foi doada pela Coroa Portuguesa. Para tanto, precisou travar um intenso combate com os índios Caetés, os habitantes do local.  Engraçado como, embora de culturas tão distintas, portugueses e caetés possam ter contribuído para a construção da Memória e da História deste povo, lhes deixando sua marca.
         Pude ver coisas magníficas nesta pinacoteca. Não sei o nome dos quadros, mas têm quatro que contam bem a História local. Estes ainda contêm inscrições que contam ainda melhor, caso o seu poder de interpretação de imagens não esteja ou seja tão bom assim. Tive a curiosidade de transcrever uma e agora transcreverei aqui: Depois de os holandeses terem saqueado esta Vila de Igarassu no ano de 1632 tornando a ela no tempo em que estavam povoando Itamaracá a buscar a telha de algumas casas e igrejas para as fábricas que faziam indo destelhar também esta igreja matriz de São Cosme e Damião o não puderam conseguir porque dos que subiram uns ficaram cegos, outros mortos. Com trabalho e pela memória se pôs este quadro no ano de 1729 que deu de esmola o Reverendo Padre Manuel de Barros Vale”. Fiz algumas adequações para a língua usada atualmente. A língua que é um fenômeno originado na memória coletiva, evoluindo na expressão das relações de tempo através das épocas e ligada à tomada de consciência da identidade nacional do passado. Para O historiador Jules Michelet, por exemplo, a História da França só se inicia com a criação da língua francesa. Mas voltando, fiz umas adequações ortográficas. Talvez não tenha entendido uma palavra ou duas. Mas no geral era isso que tinha escrito. Este relato, escrito tanto tempo depois deve estar carregado de discurso histórico, ideologia. Aquilo que alguém quer que o resto da população acredite que foi realmente o que aconteceu. Eu particularmente duvido muito que pessoas caíram cegas e mortas ao tentarem atacar a Igreja de São Cosme e Damião. Fui até chamado de ateu pelo meu amigo guia que me disse que para uma pessoa que se salvou de um naufrágio eu sou muito incrédulo. Disse a ele que acredito em Deus e em milagres, mas tudo tem limites. Mas o que sei realmente é que em 1685, quando as cidades de Recife, Olinda, Itamaracá e Goiana foram assoladas pela febre amarela, Igarassu escapou ilesa da praga. Este milagre é associado a São Cosme e Damião. Ah! Estes quadros que contam a História do local pertenciam à Igreja de São Cosme e Damião.
         Há um quadro que lhe segue por onde você for. O olhar dele acompanha a pessoa. Deu-me até um certo medo, mas o rapaz explicou-me que é uma técnica utilizada pelo pintor que permite isso. Ave Maria! Já estava com medo. Pensei que fosse algum espírito que tivesse incorporado no quadro. Tem um outro quadro muito bonito, no qual todos os olhares falam, mas em especial os olhares de Jesus e Maria.
         Não pude passar muito tempo contemplando aquelas maravilhas artísticas, pois havia outros visitantes para entrar. As luzes começaram a piscar, indicando que a minha contemplação havia terminado. Passei à Sacristia. O teto (mais uma vez, ele) é lindo. Representa a ascensão da Virgem Maria. Um fato curioso é que há uma partitura na pintura. Não me lembro de ter visto partituras pintadas em quaisquer igrejas que já tenha ido. Mas também não tenho me lembrado de muita coisa ultimamente. Este é um dos motivos pelos quais estou escrevendo este diário. Numa terra distante, com uma memória coletiva que já não é minha, não tendo também uma memória individual as coisas se complicam ainda mais. Ainda na Sacristia há quadros com os quatro doutores da Igreja: Santo Agostinho, São Gregório Magno, Santo Ambrósio e São Jerônimo. Ao ver Santo Agostinho, lembrei-me de seus estudos sobre o tempo. “O que é o tempo? Se não me perguntam, sei. Se me perguntam, desconheço”.  É engraçado como é assim que funciona. O tempo é algo que está tão presente em nossa vida e ao mesmo tempo é algo tão difícil de explicar.  A melhor explicação que achei para o que é o tempo vem de Norbert Elias: “O tempo é uma seqüência de dois ou mais acontecimentos”. A noção de tempo seria para se descomplicar a vida em sociedade, mas será que é realmente isto que acontece? Ou será que as pessoas andam cada vez mais complicadas, por andarem tão cheias de tarefas, com o seu tempo tão ocupado que não dão conta de resolvê-las a todas no espaço de tempo que têm. O tempo é uma noção socialmente construída. E quanto mais organizada e complexa a sociedade for, mais artifícios se usará para medir o tempo, ou melhor, para correr atrás do tempo, ou contra ele. Ainda pensando o tempo em Santo Agostinho, ele nos diz que só existe o tempo presente: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. Isto leva-me a pensar que passado e futuro fazem parte do presente, pois fazem parte da sua História. E hoje pode se pensar no passado e no futuro. Revisita-se o passado toda vez que recorda-se dele. 
         Ainda na Sacristia, há uma enorme e belíssima pia em pedra sabão e no teto, uma azulejaria em tapete esplêndida. Nos azulejos da parede, ao contrário dos azulejos encontrados dentro da igreja, há cenas do cotidiano. Alguns estão faltando. Acho que pela ação do tempo. Nem sempre os patrimônios históricos e culturais são bem preservados. Ao sair do convento, já era noite. O rapaz que me serviu de guia, que tem por nome Pedro, me chamou para passar a noite em sua casa, pois visto que a casa que me hospedava era um pouco distante.

Quarto dia: Mais algumas reflexões sobre Memória e Tempo.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
    Passei a noite quase sem dormir pensando em Tempo, Memória, História e todos estes conceitos que fala-se tanto e que se tem uma enorme dificuldade em conceituá-los. E ainda pensei sobre a escrita da História. Na casa de Pedro há alguns livros. Fui procurar para ver se tinha algum que falasse sobre estes conceitos. Achei e agora escrevo aqui algumas de minhas reflexões.
Para Michel de Certeau, a prática e a teoria se encerram no próprio relato. A arte de dizer envolve a arte de pensar e de fazer. O conto, o romance, a narrativa tornam-se uma variante de discurso que sabe e é uma autoridade em matéria de teoria, oferecendo um novo modelo para o discurso científico.  A História, quando narrada, cria um espaço de ficção. Não poderia ser diferente, se o próprio relato aproveita-se da ocasião. Configura-se por um desvio do passado, ou mesmo de uma citação. É coisa momentânea, irrepetível.  O discurso produz efeitos, não objetos. Através da recitação, encontra-se o que está além do necessário e do suficiente na narração. E assim o é na recitação da tradição oral: uma maneira de repetir séries e combinações de operações formais, com uma arte de “fazê-las concordar” com as circunstancias e o público. A arte de dizer, coberta de uma eficiente retórica, permite um “rearranjo do conjunto”, um efeito conveniente sobre o receptor. A prática discursiva da história é ao mesmo tempo a sua arte e o seu discurso.
Ainda em Certeau, a memória mediatiza as transformações espaciais. Tal modificação é dependente do momento, de uma ocasião. Como essa ocasião é “aproveitada”, não criada, ela depende do outro, das circunstâncias exteriores. Nasce com as alterações presentes no outro, e com elas se perdem. Para Certeau, a memória não pode ser comparada com um relicário. Ele vive de crer nos possíveis, à sua espreita. A resposta da memória frente a essas alterações é singular. São pequenos detalhes que representam um todo. Certeau considera como estranha a mobilidade da memória, pois é difícil definir o que são esses detalhes.
Voltando ao tempo, Halbwachs nos aponta para uma divisão social deste. Progressivamente a natureza deixa cada vez mais à sociedade o encargo de organizar a duração. Portanto, podemos dizer que estaríamos submetidos a uma disciplina social do tempo, na qual as nossas ações se ajustariam a um encadeamento único, obedecendo aos momentos do corpo social. Cada ser humano seria dotado de uma duração individual, ou de um sentimento de duração, peculiar, este sendo um traço característico da consciência. Entretanto, é possível que várias consciências possam se encontrar. Acho que é isto que ocorre entre mim e o lugar em que me encontro. Vim de outro lugar, com um tempo próprio. Agora estou num lugar que me é estranho. As pessoas têm um modo de vida diferente do meu, uma memória coletiva diferente. Quando ele fala em sentimento de duração, logo me leva a pensar na teoria da relatividade de Einstein, na qual o tempo seria meio “elástico”, podendo ser mais longo ou mais curto, dependendo da situação que se está vivendo. E geralmente ele voa quando o que a gente está vivendo é muito bom. Em falar em muito bom, já ouvi falar que a memória não guarda as coisas tais quais nós a vivenciamos. As coisas boas não são tão boas e as ruins, não são mais tão ruins. Não agüentaríamos se tivéssemos as nossas recordações tais quais nós a vivenciamos. Interessante não? Deve ser por isso que não consigo lembrar-me bem do que me aconteceu no naufrágio.
... Várias consciências possam se encontrar. Acho que foi isso o que ocorreu quando se encontraram índios caetés, portugueses e holandeses. Com certeza os índios possuíam uma noção de tempo e um ritmo de duração muito diferente dos de holandeses e portugueses.

Quinto Dia: A Igreja de São Cosme e Damião e Convento do Sagrado Coração
         Ontem não saí de casa. Fiquei com uma enorme dor de cabeça. Acho que de tanto pensar. Deve ser a dor do conhecimento...
         Hoje visitei a Igreja de São Cosme e Damião, que é datada de 1535, a mais antiga do Brasil. A igreja é em nave única, que era um espaço único de catequese utilizado pelos Jesuítas para catequizarem os índios. O seu altar é posterior à construção original da igreja.  Há aberturas laterais para que entre luz, mas a luz que entra não incide diretamente sobre as figuras.  Na sacristia da Igreja, podemos ver esculturas antigas que nos contam muito sobre a História da Igreja. Um verdadeiro tesouro.
         Não cheguei a conhecer por completo o Convento do Sagrado Coração, mas pude ver a sua roda de enjeitados, na qual as mães que não queriam os seus filhos colocavam-no na roda para que ele pudesse esperar por uma adoção.  Segundo uma moça que conheci, de nome Nicole, o convento foi fundado no século XVIII, pelos Padres Manuel Sepúlvida e Gabriel Malagrida, com a função de guardar as moças de família que se "perdiam" sem autorização dos pais. Bem interessante esta função do convento...
         Estou agora na casa de Pedro e é hora do almoço. Vou almoçar e dormir um pouco. Ainda estou cansado do naufrágio e das tantas informações recebidas ontem.

Sexto Dia: Itapissuma.
         Hoje Pedro chamou-me para visitar com ele a cidade vizinha. Chegamos por lá perto da hora do almoço. Almoçamos uma deliciosa caldeirada, um prato típico do local. Após o almoço, fomos contemplar o Canal de Santa Cruz, de onde podemos ver a Ilha de Itamaracá.
A palavra Itapissuma é de origem tupi-guarani e significa Pedra Negra.  Este nome foi dado por causa de grandes pedras moles que ficavam à beira do Canal de Santa Cruz.
No local há uma igreja, a Igreja de São Gonçalo do Amarante, datada do século XIX. Perto da igreja há um fórum. Olhando para a cidade, vê-se que a pesca é uma de suas principais atividades, pois há muitos barcos no Canal. Ao se contemplar o Canal de Santa Cruz, se tem a impressão de que o tempo parou, mas como diz Cazuza, “O tempo não pára”.  Dormimos em Itapissuma.


Sétimo Dia: Partida para Itamaracá.
         Próximo à aurora saímos em direção à Itamaracá. Uma ilha belíssima. A palavra Itamaracá também é de origem tupi-guarani, como Igarassu e Itapissuma, e quer dizer Pedra que Canta.
         Fomos ao povoado de Nossa Senhora da Conceição, mais conhecida como Vila Velha. Para chegarmos lá passamos por uma estrada que atravessa o Engenho Amparo e algumas chácaras. Quem nunca foi lá não tem noção de como a vista é bonita. Acho que uma das melhores vistas que já vi, se me permite o trocadilho. Se tem uma vista incrível da Coroa do Avião.
         Vila Velha está situada na parte sul de Itamaracá, em um terreno elevado do Canal de Santa Cruz. Ela foi a primeira capital da capitania de Itamaracá. E também o seu primeiro povoado, em 1535. Por aqui há poucas casas. Elas estão localizadas em torno de uma área livre, que por sinal é uma área quadrada. E não redonda como geralmente se vê na América portuguesa. Povoados em torno de áreas quadradas são característica da colonização espanhola. Há uma igreja no local, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Após a restauração pela qual passou, deixaram à mostra os vários materiais que foram utilizados na construção da mesma.  Há uma bela pia batismal, que também é muito grande. Acho que a maior que já vi. Como também há um confessionário perto do altar. Este é muito curioso. Na parte que o padre senta, há um buraco. Deve ser para melhor acomodar as suas nádegas.  Fiquei me perguntando se confessionários escondem a cara do pecador por isto ser historicamente construído. Ou será que é anti-ético ver o  rosto de quem peca? Ou será que são as duas coisas?
         Almoçamos na casa da irmã de Pedro, Virgínia. Como ia chover, ficamos por aqui. Acho que só iremos embora amanhã.
Oitavo Dia: Mais tempo
         Como continuou a chover, passamos ainda o dia de hoje na casa de Virgínia. Como levei alguns livros de Pedro, pude continuar os meus estudos sobre o Tempo.
         Para Halbwachs, as divisões do tempo nos são impostas de fora, pois se fazem necessárias no conjunto de relações que se criam entre as pessoas, e entre as coisas e as pessoas. Para que houvesse uma melhor fixação das divisões do tempo, foi necessário que nos entendêssemos a este respeito com outros homens tomando como base as mudanças e os movimentos. O encontro das consciências seria o momento em que os pensamentos se fundem num mesmo instante. Na verdade, o próprio pensamento é o local do encontro entre pensamentos. A função do tempo seria o quadro da lembrança, representado por uma série de dados temporais que nos ajudariam a lembrar acontecimentos passados organizando-os cronologicamente. Percorrendo-se em pensamento o quadro do tempo, encontramos a imagem do acontecimento passado.
         Acabou de estiar. Seguiremos viagem.

Nono Dia: O Forte Orange
Como chegamos de noite ao Forte, montamos uma barraca e dormimos. Ao amanhecer pude ver o quão grandioso ele é. O Forte está localizado na entrada sul do Canal de Santa Cruz. Foi construído logo após a invasão da Ilha de Itamaracá pelos holandeses, em 1631, segundo projeto do engenheiro Pieter Van Bueren. Foi denominado Forte Orange em homenagem à Casa de Orange, dos príncipes que descendiam de Guilherme, o Taciturno. No final do século XVII, já ocupado pelos portugueses, o Orange passou a ser chamado Fortaleza de Santa Cruz. Foi construído inicialmente em taipa de pilão. No princípio do século XVIII foi revestido em pedra e cal por engenheiros portugueses, conservando, porém, o traçado holandês original, com seus quatro baluartes. Nessa época, ganhou também o portão de entrada com brasão português.
A entrada do Forte é curvada, propícia à defesa militar contra qualquer invasor. No meio do Forte há uma cacimba. E seguindo-se em frente, há uma capela, que está sendo escavada, então não pudemos entrar. O triste é que o local não é bem conservado. Pode-se ver um canhão quase desaparecendo em meio à areia. A impressão que tenho é que um pedaço de História desaparece com aquele canhão, quando ele for engolido pela areia.  O local tem uma História curiosa. Um preso passou muitos anos aqui para conservar o local. Para mim, é bastante engraçado que esta atitude parta de um preso. O rapaz passou vários meses amarrado a uma corrente de ferro, para não fugir, a fim de conservar o Forte. Ele também guardou alguns documentos referentes ao lugar. Já pensou se esta pessoa não tivesse existido? O que seria deste local? Será que a sua História teria se perdido da memória coletiva, como tantas outras? Ou será que a sua História seria diferente?

Décimo Dia: Reflexões Halbwachianas ou sobre Halbwachs
         Para Halbwachs, haveria um tempo abstrato, o “tempo matemático”, “vazio de consciência”. Liga-se a fatos que não têm data e não mudam de natureza, indiferente aos fatos nele posicionados, não ajudando na memória desses fatos. Haveria também um tempo real, ou “vivido”, em oposição ao tempo matemático. A única maneira de permanecermos no tempo real seria por meio da consciência coletiva, que estabeleceria, por meio da experiência social de uniformização das divisões do tempo. Embora possamos considerar que não exista um tempo social único. Isso implica dizer que a diversidade de grupos sociais está ligada a diferentes concepções de tempo, há tantos calendários quantas sociedades diferentes. O tempo de onde venho não é igual ao tempo das cidades pelas quais estou passando. Aqui tudo parece tão calmo, tão tranqüilo. De onde venho, tudo é mais agitado. As pessoas correm mais. Correm, talvez, para não chegarem a lugar algum.
É importante a forma como os grupos percebem os fatos, e a significação dada por eles; podemos dizer que dois grupos distintos, com durações distintas, têm percepções diferentes do mesmo fato. O amanhecer, para uns pode ser uma grande oportunidade de ver  um belo nascer do sol, enquanto que para outros é o começo da correria: ir ao trabalho, levar os filhos à escola, lavar, passar, cozinhar. Cada grupo tem uma noção de tempo de acordo com suas necessidades e tradições.
A memória é fundamental no caminho a percorrer em busca dos acontecimentos que se sucedem no tempo. As lembranças de um povo, mais ou menos distantes, o conteúdo de acontecimentos do pensamento oferecido pelo tempo real, evocados, nos dá pistas da importância da memória para quaisquer grupos. Como uma sociedade poderia tomar consciência de si própria se não pudesse percorrer o curso do tempo, repassando os traços que deixou sobre si mesma? Daí a reconstrução do passado pela memória histórica e a reinvenção do passado pela memória coletiva.

Décimo Primeiro Dia: Decisões.
Hoje atracou um navio aqui perto. O Pedro perguntou-me se eu não iria embora. Pensei seriamente a respeito e resolvi ficar. Alguém me disse alguma vez que conhecendo sobre o tempo, se conhece a si mesmo. Não digo que já conheço tudo sobre o tempo, pois ninguém conhece tudo sobre qualquer coisa que seja. Descobri que tenho que dar um tempo na correria. Aproveitar mais a vida. Sair um pouco do tempo coletivo, se é que isso é possível, e prestar mais atenção no modo como venho usando o meu tempo individual. Preciso ter mais prazeres na vida. Me divertir mais.  E isso eu nunca poderei fazer no lugar de onde venho.
Tenho notado que alguns fatos estão sumindo de minha memória. Não me lembro mais nem de meu próprio nome. Me chamam de Vinícius. Um belo nome, mas acho que não é o meu. Apenas acho. Não sei ao certo.
Ficando aqui tenho a impressão de que poderei me inserir nesta memória coletiva, já que estou perdendo a memória coletiva do lugar de onde vim. Ficando aqui posso fazer parte da História desta terra. A memória diz muito de nossa identidade. Perco minha identidade a cada dia... Fico aqui para tentar re-escrever a minha História.

2 comentários:

  1. Belo relato, caro viajante. Só uma coisinha, Igarassu (Igaraçu), vem realmente do Tupi, mas quer dizer Canoa Grande,ou Navio. Felizmente, a igreja dos franciscanos passou por uma grande restauração, numa parceria Brasil/Portugal/Espanha, e as pinturas do forro estão bem visíveis agora, para nosso deleite. Já que fica, seja bem-vindo. Aproveite.

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  2. Obrigada pela correção. A igreja passou por uma restauração? Que maravilha!!!

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